Recentemente, a Organização Mundial de Saúde (OMS) reconheceu o vício em videogames como um transtorno de saúde mental na publicação da 11ª edição da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID). De acordo com a agência de saúde das Organizações das Nações Unidas (ONU), esse risco atinge cerca de 3% dos gamers.
O uso excessivo de dispositivos tecnológicos e a compulsão por games são um problema de saúde pública. Além de ter grandes chances de afetar seriamente a saúde mental e física do indivíduo, a dependência por jogos eletrônicos ou virtuais também traz prejuízos no âmbito social, familiar, educacional e profissional. Para a OMS o vício em videogames precisa ser tratado como um transtorno de saúde mental.
Se você tem interesse em saber mais sobre assunto por um viés psicanalítico, continue a leitura desse artigo.
Intoxicação Eletrônica
A compulsão repetida por jogos em adolescentes ou adultos, bem como a introdução cada vez mais precoce de crianças e até mesmo bebês aos aparelhos eletrônicos, apontam para um fenômeno contemporâneo ligado a saúde psíquica, as intoxicações eletrônicas. O vício em games diz respeito a dificuldade de se viver encontros com o outro, em abrir-se para a alteridade.
Esse nível de intoxicação pode gerar sérias consequências no reconhecimento do próprio corpo, na percepção do mundo ao redor, no enfrentamento de desafios da vida, na construção de laços sociais, e no caso de bebês, talvez o mais grave de todos, no risco a constituição psíquica.
Qual a relação do vício em videogame com a saúde mental?
Uma das explicações científicas que relaciona vício em jogos eletrônicos ou virtuais com a saúde mental é dada pela reação bioquímica gerada em nosso cérebro por meio da liberação do neurotransmissor chamado dopamina. Ele produz a sensação de prazer, euforia, recompensa. E a dependência no jogo gera mais necessidade desses efeitos no organismo.
Porém, o transtorno mental é muito mais do que o resultado de reações bioquímicas. A psicanálise tem um posicionamento mais crítico e uma visão mais extensa quanto a definição de doenças mentais.
Videogame: Diversão ou dependência? Você controla o game ou ele controla a sua vida?
A OMS caracteriza esse problema de saúde mental a partir de padrões de comportamentos que se repetem com alta frequência. Os principais são: falta de controle do próprio tempo para parar de jogar, quando o indivíduo da prioridade ao game do que outras atividades, quando deixa de se relacionar com outras pessoas, de estudar, trabalhar, comer, dormir e fazer outras obrigações em função do jogo e continua jogando mesmo percebendo os prejuízos à saúde mental e física.
Quais comportamentos o indivíduo passa a ter?
A compulsão em jogar vídeo game pode isolar, em especial, crianças e adolescentes do convívio social em uma etapa da vida em que vincular-se com o outro é vital.
Constituir novos laços sociais na adolescência é fundamental. Nessa etapa da vida, o jovem precisa expandir suas identificações e atrelá-las a grupos de afinidades fora do contexto familiar, para que assim se encoraje a experimentar certa emancipação em relação as identificações de origem, de pai e mãe. O momento de transição que a adolescência representa deve ser potente para encaminhá-lo para uma vida adulta mais rica no campo psíquico.
Nas situações de compulsão por jogos virtuais, o jovem fica atrelado a um grupo que geralmente se dá entre pares de adolescentes, o que é normal. Entretanto, se ele se restringe somente a essa experiência, toda a riqueza de situações que emergem de encontros pessoais como gerir conflitos com os amigos, lidar com a raiva, amor, vergonha, rivalidade, com as diferenças e alteridade, enfrentar as transformações físicas do corpo e como esse corpo reage diante de outros na emergência da sexualidade, entre outras situações, ficam desinvestidos.
Ou seja, todos precisamos nos confrontar com as diferenças subjetivas para que nosso psiquismo descubra recursos diante da alteridade. Por exemplo, se sempre que o indivíduo tiver um problema com um grupo de gamers, a ação mais prática para ele for colocar o grupo em stand by ou simplesmente mudar de grupo, isso o empobrece pois ele começa a pautar as suas relações numa perspectiva de substituição, como se bastasse deletar os problemas e não os enfrentar para resolver.
Como identificar os sinais de alerta?
Quando o indivíduo abre mão das atividades de rotina e concede mais importância para o jogo, já é um grande sinal de alerta para detectar a dependência. Por outro lado, temos que refletir não só sobre o problema do transtorno de saúde mental, mas o porquê dele ter sido construído. O mundo contemporâneo tão marcado pela exacerbação de valores individuais, pelo não aprofundamento das relações, pela descartabilidade do outro, acabou adoecendo nossos jovens.
Os sinais de alerta devem se dar em duas mãos. O adolescente compulsivo passa a ficar a maior parte do tempo no computador, inclusive almoçando e jantando em frente à tela, desliga-se de contatos sociais presenciais, dorme pouco, não tem motivação para encontros sociais, seja na escola, com amigos ou casa de parentes. Por outro lado, a sociedade também deve ver os sinais de alerta que estão acontecendo, porque ela está produzindo e contribuindo para que estes jovens se isolem.
Como é feito o tratamento?
Quando o indivíduo está dependente de jogos eletrônicos ou virtuais, ele precisa de um especialista para ajudá-lo a controlar a situação. O dispositivo psicanalítico amplia a escuta sobre essas situações de compulsão porque ela aprofunda nas questões subjetivas e contextualiza também no social. Ela não patologiza a adolescência culpabilizando-a pela própria doença. A escuta de um analista diante desse paciente visa auxiliá-lo a localizar como esse caminho da compulsão ao game foi acontecendo, a fazê-lo implicar-se nessa busca, criando ali, as possibilidades de abertura e transformação.
A psicanálise se ocupa em entender o sintoma e não rechaça-lo, pois, por ora, construir um sintoma, é o único recurso possível para o paciente. Então, ao longo do percurso psicanalítico, o paciente, aquele paciente alheio ao mundo, esvaziado de desejo, começa a tecer relação primeiro com seu próprio desejo que ficou apagado, quando ele se fixou na tela.
Embora esses jovens lidem com historinhas na tela, falta a eles muito do campo da fantasia que nos alimentam com nossas crenças, projetos e ideais. O mundo imaginário subjetivo é pobre. Portanto, não basta eliminar os sintomas se o mundo interno está precário de imaginário. É preciso todo um trabalho para resgatar o paciente de dentro pra fora, e não somente tentando mudar seu comportamento.
Como prevenir?
Produzir um mundo cultural e de trocas sociais mais ricas, verdadeiras, mais coletivizadas, menos calcadas no individual. Promover conteúdo interessante nas escolas, nos espaços públicos, nas atividades esportivas, nas casas, para que o jovem possa ter por hábito debater, questionar, estar com o outro, para que esse outro seja mais convidativo do que o vídeo game.
Não basta darmos o nome de uma doença (mais uma em meio a outras tantas descritas nos manuais de transtornos mentais) e descrever seus sintomas ou identificarmos que a dopamina é liberada em nosso cérebro provocando sensação de prazer e recompensa. Dado o diagnóstico, medicamos e ponto.
Isso é chover no molhado quando a situação é muito mais grave. Precisamos ampliar o debate, sair do senso comum e ter um olhar crítico sobre o que nossos adolescentes que adoecem estão querendo nos dizer. Recorrem ao game porque ali o sucesso é garantido: morre-se, se ganha outras vidas, a castração não é vivida, é adiada.
A classificação do vício em videogames como um transtorno mental pela OMS foi abordada nessa semana no Jornal Hoje da Rede Globo, clique aqui e confira o vídeo da reportagem.
Para compreender mais sobre os impactos das doenças mentais na vida do ser humano, conheça a especialização em Psicopatologia – Configurações sofrimento psíquico na contemporaneidade do IPOG. e a pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes: Teoria e Clínica.
E você, o que acha dessa medida da OMS? Deixe sua opinião no espaço abaixo para comentários.