Os efeitos de um diagnóstico de transtornos mentais equivocado pode ser catastrófico para a vida de crianças e adolescentes.
Para abordar a importância desse assunto, a psicanalista, Mestre em Psicologia Social e da Personalidade e coordenadora do curso de pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes do IPOG, Márcia Marques L. O. Pires, respondeu em uma entrevista as principais dúvidas sobre essa temática.
Boa leitura!
IPOG: Quais os transtornos mentais que mais atingem crianças e adolescentes?
Me. Marcia Pires: Inicialmente seria importante fazer uma diferenciação entre transtornos mentais, indicadores de adoecimento psíquico e sofrimento psíquico. Este último é uma condição mais ampla, que abarca os transtornos mentais, aqueles que estão em processo de adoecimento psíquico, mas principalmente sofrimentos inerentes a condição humana, que não deveriam configurar-se entre transtornos mentais, mas hoje são patologizados e medicados.
Isso se deve a extensão das classificações diagnósticas, cujos modelos baseados em sinais e sintomas, desconsideram a subjetividade humana ao classificar, diagnosticar e medicar toda manifestação que fuja a um padrão normatizado de comportamento.
Assim, vemos crescer em proporções extremas os diagnósticos de:
- Transtorno do Espectro Autista (TEA);
- Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD);
- Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH);
- Transtornos de Ansiedade na Infância e Adolescência;
- Transtornos Disruptivos da Regulação do Humor;
O que a Psicopatologia Fundamental, cujo campo conceitual é a Psicanálise, se propõe é exatamente considerar estas condições de sofrimento e adoecimento psíquico dentro de uma experiência subjetiva, zelando para que o sujeito não seja reduzido a seu transtorno, ou mesmo evitando criar condições discursivas que venham cronificar o sofrimento e que promovam a discriminação e estigmatização do sujeito.
IPOG: Que tipo de comportamentos devem ser observados? Quais são os sinais de alerta?
Me. Marcia Pires: No diagnóstico de transtornos mentais, aquilo que produz sofrimento para a criança, o adolescente, ou para família deve ser considerado um sinal de alerta. Às vezes, a criança ou o adolescente expressam este sofrimento através de manifestações excessivas, comportamentos extremos ou incomuns pra ele próprio, sintomas, retrações ou interrupções do desenvolvimento.
Mas também é preciso se pensar que existem situações que o esperado é que produzam sofrimento. Por exemplo, quando se perde alguém, espera-se um sofrimento intenso. Às vezes, não sentir, não reagir é o que mais preocupa.
Hoje em dia, é muito frequente que adolescentes cheguem aos consultórios com comportamentos totalmente adequados, porém indiferentes à vida, às suas próprias escolhas. Isso deve ser considerado um sinal de alerta. Um profissional capacitado deverá saber reconhecer estes pontos e analisá-los na vida e na história do sujeito.
IPOG: Quais são os principais efeitos de diagnósticos de transtornos mentais equivocados sobre a vida das crianças e adolescentes?
Me. Marcia Pires: Evidentemente podemos situar em todas as pessoas uma quantidade de sinais e sintomas que se agrupados facilmente seriam caracterizados como transtornos mentais dentro dos modelos clássicos.
Grande parte das medidas terapêuticas visam eliminar ou silenciar estes sintomas, sem exercer qualquer tipo de questionamento a respeito do motivo de sua existência ou relevância para aquele sujeito. O silenciamento irresponsável destes sintomas muitas vezes produz indivíduos robotizados, desvitalizados, ou produz novos sintomas.
Devemos considerar ainda que a partir do momento que se recebe o diagnóstico os olhares dos pais e das pessoas ao redor voltam-se quase exclusivamente para o grupo de sintomas que caracterizam o transtorno. O sujeito é desconsiderado como um todo e assim, a criança ou adolescente passa a se reduzir a seu transtorno aos olhos do outro: “ele é autista” ou “ele é hiperativo”. Talvez este seja o maior dos danos, uma vez que reduzido a seus sintomas, ele cada vez mais será apenas seu transtorno.
IPOG: Como identificar o diagnóstico de transtornos mentais equivocado?
Me. Marcia Pires: Três pontos podem ser considerados:
- Às vezes o diagnóstico é acertado, contudo, a família e aqueles que cuidam da criança ou do adolescente, tem uma visão reduzida e determinista daquele ‘transtorno’, considerando que seu destino está condenado a ‘ser o transtorno’: “se é tal coisa, logo ele será sempre do jeito tal”. Especialmente em crianças e adolescentes nunca sabemos dizer com total exatidão o que ele será ou até onde conseguirá ir a partir de uma intervenção efetiva. Eles sempre nos surpreendem.
- Às vezes a criança está diagnosticada e medicada, mas os sintomas e sofrimentos persistem sem qualquer tipo de deslocamento. Nestes casos há de se considerar que há algo equivocado, seja no diagnóstico, na medicação e/ou na intervenção.
- Às crianças e adolescentes manifestam muito facilmente os sintomas daquilo que está desregulado na família ou nos ambientes em que vivem. Muitos tratamentos se mostram ineficientes pois reduzem-se ao bloqueio do sintoma na criança e no adolescente, deixando aqueles que cuidam da criança de fora do processo.
IPOG: Quais são os especialistas capacitados para diagnosticar um transtorno e prescrever um tratamento?
Me. Marcia Pires: O diagnóstico deve ser analisado a cada caso. O mais indicado hoje seria pensar que o diagnóstico deve ser feito por equipes multidisciplinares que consigam pensar este sujeito de forma integrada. Dessa forma os seguintes profissionais podem integrar estas equipes conforme cada demanda específica, respeitando para não haver excesso e zelando pela coerência no discurso.
- o psicanalista;
- psiquiatra;
- psicopedagogo;
- fonoaudiólogo;
- psicomotricista;
- fisioterapeuta;
- terapeuta ocupacional;
- e outros profissionais da saúde e educação.
Estes profissionais precisam saber conversar entre si, discutir planos de intervenção, pensar em custo-benefício evitando o excesso de terapêuticas, analisar o que será mais terapêutico em cada caso, estabelecer prioridades, pensando sempre que o sujeito deve ser soberano, e nunca o tratamento.
O que vemos acontecer hoje, é que em decorrência da falta de comunicação e integração entre os profissionais os pais acabam tendo que pensar como irão conduzir o tratamento, e eles próprios definem o que é prioridade. Desta forma os pais ficam muito desamparados diante da diversidade de discursos e ofertas de tratamento.
IPOG: Qual a finalidade de um diagnóstico de transtorno mental na infância e adolescência e quando ele é necessário?
Me. Marcia Pires: O diagnóstico tem por finalidade definir ou direcionar o tratamento, assim ele só será útil quando sua definição e especificação (diagnóstico diferencial) determinam caminhos diferentes. Em muitos casos, principalmente na infância ou adolescência, seria importante considerar que existem indicadores de risco de desenvolvimento e condições de sofrimento psíquico.
Nestes casos a intervenção é necessária, mas um fechamento de diagnóstico pode ser um risco, ou mesmo dispensável. Ao se identificar os riscos de desenvolvimento e estas condições de sofrimento, é possível estabelecer as vias de tratamento, sem estereotipar. Mas principalmente sem tomar o sujeito unicamente por seu diagnóstico, tratando-o a partir de suas possibilidades.
Se você tem o objetivo profissional de compreender as peculiaridades psíquicas de crianças e adolescente para intervir de forma adequada, conheça a pós-graduação em Psicanálise com Crianças e Adolescentes do IPOG e se especialize.