O que a decoração dos lares diz sobre seus moradores?

Parte da história da vida das pessoas está escrita na decoração de seu lar – e carrega informações, como hieróglifos a serem desvendados. A escolha de estilos, cores, composições e peças oferece pistas sobre os traços da personalidade dos moradores de uma casa.

Como bem coloca o analista junguiano James Hillman (1926): “Existe relação entre nossos hábitos e nossas habitações, entre o interior de nossas vidas e o dos lugares onde vivemos”. Por meio do estudo mais aprofundado da decoração do lar, é possível fazer uma leitura da personalidade e dos hábitos de seus ocupantes.

Desde a pré-história, o ser humano tem necessidade de imprimir sua marca no espaço onde habita, registrando sua passagem e seu domínio territorial. Nas cavernas de Lascaux, na França, por exemplo, foram descobertos em 1942 desenhos feitos há mais de 15 mil anos. Ou seja: desde os primórdios da civilização as pessoas já buscavam contar sua história, imprimir sua marca e demarcar seu espaço por meio de pintura nas paredes das cavernas.

As figuras desenhadas não se repetem, o que expressa nosso impulso ancestral de nos diferenciar dos demais, personificar ambientes e comunicar algo ao grupo social, decorando o lugar onde vivemos.

Casa X Lar

Uma casa, por si só, não é um lar. É um objeto arquitetônico inanimado, destinado ao abrigo do ser humano. Somente após um processo etológico de domínio territorial tal espaço se transforma em lar.

A decoração faz parte dessa apropriação espacial. Decorar é, com a mediação de objetos, conferir sentidos a um lugar, tornando-o mais significativo que um simples abrigo. É tornar público o modo privado de ser de cada indivíduo, é apropriar-se do espaço, submetendo-o aos desígnios de quem o habita, de forma que o reflita tal qual um espelho a sua imagem e semelhança.

Como ressalta o arquiteto canadense-americano de origem polonesa Witold Rybczynski em seu livro Casa, pequena história de uma ideia (Record, 1999), a palavra “lar” reúne o significado de casa e família, de moradia e abrigo, de propriedade e afeição.

Esse pensamento pode ser complementado pelo arquiteto finlandês Juhani Pallasmaa, quando afirma que o lar é um espaço que integra memórias e imagens, desejos e sentimentos, passado e presente. É o lugar dos nossos rituais e ritmos pessoais de todos os dias.

Psicologia e Decoração

Cada indivíduo possui uma forma de imprimir sua marca no espaço onde habita, revelando sua personalidade e os seus aspectos emocionais. Não seria exagero dizer que é uma forte agressão impedir que alguém imprima sua marca no espaço onde habita, identificando e personificando sua moradia.

Em seu livro Da Bauhaus ao nosso caos, o jornalista americano Tom Wolfe descreve a profunda insatisfação dos trabalhadores franceses com os apartamentos funcionais de um conjunto operário em Pessac, na França, projetado por Charles Le Corbusier, por serem extremamente cúbicos, assépticos, frios e incongruentes com o tipo de vida dos moradores.

Arquitetos, designers de interiores e decoradores parecem por vezes tiranos por quererem impor aos clientes as suas verdades estéticas e ergométricas. No entanto, é preciso entender que a casa é mais do que uma expressão arquitetônica, que traz em seus volumes, linhas e cores referências psicológicas e sociológicas de quem a habita. 

Como bem expressa o filósofo Gaston Bachelard, “a casa é o nosso canto do mundo; ela é, como se diz amiúde, o nosso primeiro universo”.

E, como tal, [a casa] revela nossa identidade, assim como uma impressão digital. Se não for dessa forma, vira cenário – e não lar. Não é morada, é apenas moradia.

 

A casa muda de acordo com a alma e as fases da vida de seus ocupantes, acompanhando as suas transformações. Da mesma forma que o próprio ser humano, passa por ciclos: nasce, cresce e morre. Assim, quando se idealiza sua ocupação, a primeira ideia é que, ao fim da construção nem tudo esteja pronto para morar.

Se a casa for habitada, seus hábitos também a habitarão, mas eles não chegam antes do morador. “É no exercício de morar que ela se apronta, conforme os hábitos dos moradores”, afirma o arquiteto Juan Pablo Rosenberg.

Lar: extensão de quem o habita

Apesar de ser um imóvel, a casa não é estática. Ela muda, de acordo com a alma dos seus moradores, acompanhando as suas transformações, expondo a reciclagem de valores por meio de novos arranjos e espaços, cores e tecidos, seus móveis e lustres, planos e lembranças.

Mas é importante que essa mudança não seja superficial – e sim a oportunidade de renovação interior, de revisão do passado para refutar tudo aquilo que não mais diz respeito ao indivíduo, mas pode preservar sua memória e a de sua família.

É difícil avaliar, porém, até que ponto as pessoas têm consciência de que reformam suas casas por uma necessidade interior de renovação, ou se a renovação interior é o que fomenta a alteração dos espaços. O fato é que há uma correspondência entre o interno e o externo.

Nossas casas podem ser consideradas extensões de nós mesmos.

 

As que não mudam há muitos anos costumam refletir a rigidez, o medo e a insegurança de seus ocupantes. Por outro lado, a mudança constante pode revelar fragilidade emocional e inconstância de quem a ocupa.

Como diz o decorador Germano Mariutti: “Entendo o cigano que leva a casa nas costas, mas não compreendo a pessoa que muda a decoração a cada seis meses; (…) a casa tem de ser durável e estável”.

Estabilidade esta que aos poucos sinaliza necessidade de mudança, conforme a vida se processa, pois reestruturar a casa, esvaziar gavetas, arrumar armários, limpar porões e desobstruir os cômodos possibilitam a manifestação do vazio. E o vazio é o único lugar onde as coisas podem acontecer.

Daí vem o fascínio pela casa nova, com novas possibilidades, com sua beleza imaculada, como a vida deveria ser. Afinal, “beleza é uma promessa de felicidade”, escreve Allain de Botton.

O papel da decoração, porém, extravasa a promessa de beleza, sua função é fazer com que os ambientes caibam de forma física, social e psíquica no cotidiano das pessoas, comunicando quem são ou quem pretendem aparentar ser. Também é uma forma de comunicar às pessoas onde começam e terminam os limites de cada membro da família.

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Glaucus Cianciardi: Mestre em Arquitetura e Urbanismo, pós-graduado em História da Arte e em Educação, professor do curso de Master em Arquitetura & Lighting do IPOG.