Vitimologia: entenda o conceito e a aplicabilidade dessa análise

Quando se pensa no cotidiano marcado por problemas na segurança pública e no universo de crimes presentes em muitas cidades brasileiras e no exterior, um dos aspectos de maior importância na investigação criminal é o papel da vítima.

Contudo, um aspecto que poucas pessoas consideram é o de que existem diferentes tipos de vítimas e isso vai muito além do fato de que algumas estão vivas e outras não, quando submetidas às ciências forenses e à investigação. Assim, para dar um caráter mais científico e explorar melhor esse universo, surgiu a vitimologia.

No contexto da criminalística e da criminologia, é preciso levar em conta que, se existem diferentes perfis de vítimas, é preciso conhecê-los de forma mais assertiva a fim de encontrar as melhores abordagens para obter os melhores resultados.

Peritos, policiais, juristas e outros profissionais podem obter dados mais precisos e relevantes sobre delitos e prestar uma assistência mais adequada às vítimas.

Descubra, neste artigo, o que é a vitimologia, como funcionam seu estudo e sua aplicação, bem como sua importância para as investigações de crimes. Boa leitura!

O que é vitimologia?

A vitimologia é definida, normalmente, como o campo de estudo e análise do papel das vítimas no cenário de um delito. Algumas correntes de estudiosos a concebem como um ramo da criminologia, outros como uma ciência autônoma e há ainda aqueles que não se orientam por nenhuma das duas perspectivas.

Ao longo da história do Direito, em muitos momentos o foco de atenção se deteve na figura do infrator, relegando a vítima a um segundo plano. Vejamos 3 momentos importantes:

  • Na fase da vingança/justiça privada

Em que se concedia à vítima o direito de escolher como solucionar o resultado do delito. Era uma espécie de vingança por meios diversos, incluindo punições físicas, com o objetivo de apaziguar a coletividade e trazer reparação para o ofendido.

Suspende-se a vingança sem limites e a vítima é posta em uma posição periférica em relação ao ofensor.

  • Depois da Segunda Guerra Mundial (o redescobrimento)

O genocídio de judeus e outros grupos pelos nazistas e todo o horror desse periodo demandaram uma ampliação do estudo da vítima e sua relação com o crime e o agressor.

A origem da vitimologia é atribuída ao advogado israelense exilado nos Estados Unidos Benjamin Mendelsohn, que abordou o tema em sua obra intitulada Um novo horizonte na ciência biopsicossocial – a Vitimologia, no ano de 1947.

Outros atribuem o começo desse campo de estudos a quando o professor e psicólogo alemão Hans von Hentig lançou seu livro denominado O criminoso e sua vítima, em 1948, chamando o estudo de vitimogênese e lançando luz sobre a necessidade de analisar a vítima no contexto delitivo.

Qual é o campo de estudo da vitimologia?

Em linhas gerais, nesse campo a vítima é pensada em suas dimensões sociais, psicológicas, biológicas, seu papel de cooperação ou não para o resultado da infração, sua relação com o ofensor, seus direitos dentro da esfera jurídica etc. O estudo da vitimologia é, assim, pautado em grande interdisciplinaridade.

Dessa maneira, o campo de estudo compreende os eixos da criminologia e de Sociologia, Direito, Psicologia, estudo do comportamento, entre outras disciplinas que ajudem a descrever e explicar as manifestações das vítimas no contexto da dupla penal (delinquente-vítima).

Como é dividido o estudo da vitimologia?

A criminóloga venezuelana Lola Aniyar de Castro, em sua tese sobre vitimologia, no ano de 1969, referenciando Mendelsohn, faz a seguinte divisão resumida do campo de estudo:

  1. o estudo da personalidade da vítima como resultado de aspectos do subconsciente
  2. a descoberta dos elementos psíquicos no contexto criminal que subjazem  e determinam a aproximação entre a vítima e o ofensor
  3. a análise da personalidade das vítimas em um contexto mais amplo do que o da criminologia, alcançando situações como sudícidio e acidentes de trabalho
  4. o estudo de metodologias para identificar pessoas com tendência a se tornarem vítimas
  5. a procura de métodos que previnam a recidiva da vítima

Qual é o objetivo do estudo da vitimologia?

De forma resumida, os principais objetivos da vitimologia são:

  • dar importância à vítima
  • analisar e explicar o comportamento da vítima em variadas dimensões
  • elaborar mecanismos que permitam a redução de ocorrências danosas (tanto no plano coletivo quanto no individual)
  • servir de base para a ampliação do acolhimento e amparo às vítimas

Quais são os tipos de vítimas?

Em linhas gerais, o conceito de vítima refere-se ao indivíduo acometido por algum mal e que sofre danos, o que no Direito Penal se concebe como sujeito passivo ou ofendido em infração penal.

No entanto, enquanto uma conceituação completa do que é uma vítima engendra grande complexidade, sua tipologia foi definida por diversos estudiosos. Entre eles duas abordagens se destacam: a de Benjamin Mendelsohn e a de Hans Von Hentig.

Tipologia segundo Mendelsohn

Vítima completamente inocente ou ideal

Refere-se àquela que é completamente inocente na produção do resultado delitivo. O ofensor tem a culpa isoladamente. Exemplo: vítima de bala perdida, de ataques terroristas etc.

Vítima menos culpada que o delinquente ou por ignorância

É aquela que tem menor grau de culpa em relação ao delinquente, porém contribuiu de alguma maneira, consciente ou não, para o evento delitivo. Exemplo: presença em locais notadamente perigosos, uso/exposição de objetos de valor em contextos desfavoráveis etc.

Vítima tão culpada quanto o delinquente

Situação em que a vítima participa ativamente do resultado delitivo. Exemplo: os casos enquadrados na situação de fraude ou torpeza bilateral no crime de estelionato. A vítima do crime, neste caso, também atua de maneira torpe e com má-fé.

Vítima mais culpada que o delinquente ou provocadora

É aquela acometida por crimes violentos depois de haver injusta provocação por parte da própria vítima.

Vítima como única culpada

Caso em que a vítima contribui ou participa sozinha da criação da situação que a vitimou. Exemplo: ser atropelado por ter atravessado rua em estado de embriaguez, vítimas de suicídio.

Tipologia de Hans Von Hentig

1. Vítima isolada

Por viver em solidão, coloca-se em situações arriscadas.

2. Vítima por proximidade

  • espacial: é a mais próxima do agressor na hora do delito.
  • familiar: pertence ao núcleo familiar do infrator.
  • profissional: tem ocorrência no caso de atividades profissionais que demandam um estreitamento maior no relacionamento profissional, a exemplo de médicos.

3. Vítima com ânimo de lucro

Aquela que, por cobiça, é enganada em estelionatos e golpes.

4. Vítima com ânsia de viver

É o indivíduo que se coloca em aventuras e situações arriscadas com base na ideia de que ainda não aproveitou bem a vida ou viveu de forma plena.

5. Vítima agressiva

Mostra-se hostil em virtude da agressão sofrida e, não suportando, irá revidar de forma agressiva.

6. Vítima sem valor

Refere-se à pessoa que, por conta de atos incompatíveis com a sociedade em que vive, é rejeitada, podendo sofrer agressões ou ser morta. É o caso dos linchamentos.

7. Vítima pelo estado emocional

Essa vítima é qualificada desta forma em decorrência de seus sentimentos de obsessão, medo, ódio ou vingança por outras pessoas.

8. Vítima por mudança da fase de existência

Trata-se daquele indivíduo que se torna vítima devido a alguma mudança de comportamento relacionada às mudanças nas fases da vida.

9. Vítima perversa

É aquela caracterizada por não ter respeito ou empatia, comumente objetificando outras pessoas. É o caso dos psicopatas.

10. Vítima alcoólatra

A ingestão de bebida alcoólica é o fator que desencadeia o processo de vitimização.

11. Vítima depressiva

É a pessoa que padece de depressão profunda e, por isso, chega ao nível da autodestruição.

12. Vítima voluntária

É o indivíduo que não faz oposição ou resiste ao delito, deixando o caminho do agressor sem obstáculos.

13. Vítima indefesa

É aquela que deixa de processar o agressor com base na crença de que a persecução judicial será mais danosa que a ação criminosa.

14. Vítima falsa

Refere-se à pessoa que se autovitima, de espontânea vontade, a fim de obter vantagens.

15. Vítima imune

É a pessoa que acredita estar imune a ações delituosas por conta de uma posição de poder ou prestígio que ocupa na sociedade.

16. Vítima reincidente

É aquela que volta a ser vítima após uma primeira ocorrência.

17. Vítima que se converte em autor

A pessoa que era vítima prepara-se para o contra-ataque. Exemplo: crime de guerra.

18. Vítima propensa

Trata-se da vítima que tem personalidade que contribui, de alguma maneira, com o ofensor. Personalidades libertinas, desenfreadas, deprimidas são exemplos.

19. Vítima resistente

Essa não aceita a agressão do autor e revida da mesma forma em defesa de si ou de outrem. Neste caso, há sempre a disposição da vítima em lutar com o autor.

20. Vítima da natureza

Os fenômenos da natureza tornam essa pessoa vítima, como no caso de terremotos.

Além dessas classificações vitimológicas, há outras dezenas propostas por diferentes estudiosos ao redor do mundo.

A tipologia proposta por Mendelsohn foi criticada por outros pesquisadores pelo fato de ser muito extensa; contudo, outros estudiosos costumam ressaltar sua adequação, considerando que ela, com suas nuances, explora bem as fronteiras da dicotomia vítima-agressor.

Graus de vitimização e importância da vitimologia

Quanto aos graus de vitimação, os estudos têm apontado três:

  • vitimização primária: é o dano direto que ocorre no momento do delito
  • vitimização secundária: ocorre durante o processo investigativo e refere-se ao sofrimento imposto à vítima pelos agentes da justiça
  • vitimização terciária: no cenário de estigmatização e abandono, a vitimiza alcança outra imagem (fama na imprensa etc.) e decide usá-la para se vingar

Especialistas alertam que os estudos em vitimologia são imprescindíveis, pois, ao avaliar aspectos como personalidade e antecedentes das vítimas, por exemplo, podem ser encontrados elementos que tenham implicações na classificação do crime e na aplicação de penas.

No Código Penal Brasil de 1940 já havia noções de vitimologia e considerações sobre a necessidade de observância do comportamento da vítima, pois, no artigo 121, § 1º, há previsão de redução de pena para quem cometesse homicídio sob injusta provocação da própria vítima.

Nesse contexto, é fundamental que peritos estejam aptos a realizar um trabalho de qualidade no estudo da vítima em cada caso concreto, pois isso é fundamental para uma tomada de decisão mais justa por parte dos juízes.

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